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Manolo Gonzales Potier nasce em 1922, numa família com dez irmãos. 
O pai, engenheiro industrial, é, na época, fabricante de brinquedos. Embora natural da vila ribatejana de Coruche, as suas principais memórias de infância são já da capital, onde a família vem a residir. Aos 13 anos, inicia em Bragança, cidade para a qual a família se desloca em meados da década de 1930 acompanhando o pai, entretanto ao serviço da Junta Autónoma das Estradas, a aprendizagem de violino com um professor particular.

Depois de se diplomar pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL), em 1951, passa a exercer a profissão liberal. Em paralelo, dedica-se ao ensino técnico em Lisboa. É professor de Desenho Industrial em três escolas: Afonso Domingues, Machado de Castro e Marquês de Pombal.

No arranque dos anos de 1950 começa a trabalhar com José de Lima Franco, 18 anos mais velho, formado na, ainda, Escola de Belas Artes de Lisboa e falecido em 1970. Lima Franco integra, então, uma equipa que conta com os arquitectos Dário Silva Vieira, falecido precocemente em 1956, e Ignácio Perez Fernandez, futuro presidente do Sindicato Nacional dos Arquitectos, desenvolvendo uma arquitectura de continuidade de linguagem moderna para promotores privados. É esta cultura de projecto que Lima Franco e Manolo Potier prosseguem na parceria que iniciam. Entre a sua produção, destaque para um conjunto de prédios de rendimento construídos na capital para o mercado imobiliário onde conseguem, pontualmente, introduzir algumas inovações em programas habitacionais correntes. Estas alterações reflectem-se funcional e esteticamente. Os casos mais significativos são os projectos de edifícios que propõem, em 1953, para as Avenidas António Augusto de Aguiar e Sidónio Pais. Segundo Ricardo Costa Agarez em O moderno revisitado: habitação multifamiliar em Lisboa nos anos de 1950 [ver JA 240], estes acabam por alterar o perfil de ocupação desta área da cidade, no que resulta o redesenho do quarteirão, já do ano seguinte. 

Questionando a função residencial que está destinada a esta zona, Manolo Potier e Lima Franco preparam os edifícios de modo a poderem ser utilizados como habitação ou escritórios, “estando a ossatura da construção prevista para a supressão de quaisquer divisórias, o que [permite] aumentar a área […] na medida das […] necessidades”, como se lê na memória descritiva citada por Agarez. Tratando-se de blocos de continuidade urbana, a galeria de distribuição comunica para o interior do quarteirão. Para a cidade, aposta-se numa composição abstracta, com vãos indiferenciados, marcados na horizontal, e a introdução de materiais de revestimento como o azulejo em padrão, por exemplo. Os apartamentos são reduzidos ao mínimo, quer na área útil quer no programa, que se resume a sala, kitchenette, instalação sanitária e um único quarto. Na sua análise, Agarez reforça que Potier e Lima Franco introduzem “uma tipologia nova, casa temporária para solteiros, ou escritório/ateliê expandível, em pleno centro da cidade”. Mas é o seu contributo para a mudança da imagem de Lisboa que torna estes dois projectos determinantes. A sua importância, como explica, reside no facto de terem renovado a expressão arquitectónica de uma área central da cidade – o Marquês de Pombal – destinada anteriormente a ser caracterizada por ocupações historicistas do tipo “português suave”, que os projectos de Lucínio Cruz, não concretizados, para os mesmos lotes ainda mantinham.

Igual programa funcional é proposto para a Avenida Visconde de Valmor, também nas Avenidas Novas, dois anos depois. O projecto de implantação em T, apresentado com o objectivo de rentabilizar o lote, conhece um destino diferente do anterior. Não é construído, consequência de alterações legislativas que regularizam a ocupação em profundidade, inviabilizando as dimensões superiores a 12 metros que o projecto admitia. Hoje existe no seu lugar uma obra de Victor Palla e Joaquim Bento de Almeida, desenhada pouco tempo depois, já dentro das novas normas.

Na maioria dos edifícios habitacionais que Potier e Lima Franco concretizam na malha urbana consolidada de Lisboa os programas residenciais são, contudo, mais convencionais e menos arriscados. No seu estudo, Agarez destaca os prédios na Rua Ferreira Borges, na Rua Francisco Sanches; no cruzamento das ruas Azedo Gneco e Infantaria Dezasseis (todos de 1953); e na Rua Pascoal de Melo (1955). Todos recorrem a uma solução em gaveto, sobressaindo nos alçados principais, a orientação horizontal que assinala os diferentes pisos.

Manolo Potier acrescenta à listagem anterior, como igualmente relevantes, o conjunto habitacional para o bairro da Picheleira (1955-
-1958), na Rua João do Nascimento Costa; ou o edifício/garagem na Rua Martens Ferrão, em São Sebastião da Pereira, onde virá a viver o engenheiro Edgar Cardoso. No bairro de Alvalade – para o qual Lima Franco tinha já projectado com Dário Vieira –, desenham diversos imóveis, de que são exemplo os edifícios residenciais (1953) localizados na Rua Dr. Gama Barros. O especulador imobiliário Emídio Pinheiro, antigo cliente do escritório e promotor nesta área da cidade, solicita a Potier, quando este está já afastado de Lima Franco, um novo edifício de quatro pisos para a Avenida Rio de Janeiro onde, aliás, possui já diversos imóveis.

É precisamente para este bairro que, ainda em co-autoria, Potier e Lima Franco projectam o Cinema Alvalade, inaugurado em 1953 e entretanto demolido, contando com a colaboração de Filipe Figueiredo. A existência de um mural da pintora Estrela Faria, valorizando a escadaria interior, reflecte a importância da integração das artes plásticas na arquitectura, movimento que assinala este período da cultura portuguesa e que se debate no III Congresso da União Internacional de Arquitectos reunido em Lisboa, nesse mesmo ano. Entre outros equipamentos públicos, encontra-se o mercado Chão do Loureiro, encomendado pela Câmara Municipal de Lisboa – uma excepção no panorama da sua habitual clientela privada –, com acesso pela Rua da Madalena, e recentemente reconvertido em silo automóvel.  

É possível detectar neste percurso conjunto, principalmente nos edifícios públicos, algumas soluções tipificadas e o recurso a elementos arquitectónicos recorrentes, casos da marcação de volumes ou da predominância de linhas horizontais, obtida a partir de retículas que uniformizam as fachadas mais urbanas. A obra mais representativa desta fase é provavelmente a Garagem Conde Barão, na Avenida 24 de Julho, concluída em 1957. Atinge-se aqui uma maturidade compositiva invejável, definida pela hierarquia funcional, que permite dignificar e qualificar urbanamente um programa aparentemente menos atractivo. O objectivo é “levar a efeito uma modelar instalação” – como informa Lima Franco em aditamento de Julho de 1952 ao projecto definitivo – não se tratando, portanto, “de uma garagem de recolha”. Na proposta final, submetida quatro meses antes, salientam que, apesar de o projecto partir de uma iniciativa comercial, “também é certo que […] virá em muito a contribuir para um importante melhoramento que a Cidade há bastante tempo merece e vem reclamando”. Para o último piso pensam “um vasto terraço e uma área destinada a três habitações para alojamento dos directores ou chefes de oficinas”, naturalmente privilegiadas em localização e vistas, e que não seriam concretizadas. Actualmente, o edifício está abandonado e o seu destino é incerto.

Com este grupo de projectos, Manolo Potier e Lima Franco imprimem um forte cunho urbano a programas de uso corrente, moldando a expressão moderna a uma configuração “clássica” mais adaptada às condições da cidade histórica. O percurso destes três últimos exemplos – Cinema, Mercado e Garagem – progressivamente demolidos e/ou transformados, é similar ao de outros edifícios seus contemporâneos que contribuíram para renovar a imagem de Lisboa durante os anos de 1950, mas cujo anonimato arquitectónico, os tornou mais vulneráveis às recentes alterações. O seu desaparecimento, nuns casos, e adulteração, noutros, apaga a presença de uma produção de qualidade média, responsável pela nova paisagem urbana que surge no segundo pós-guerra na capital portuguesa.

Em Lisboa, Potier é ainda responsável pelo Hotel Fénix, localizado junto ao Marquês de Pombal, sob projecto geral de Carlos Manuel Ramos de 1958. Projecta, sozinho ou em co-autoria, para outras cidades como Leiria (garagem para a empresa de camionagem Claras, repetindo a solução da habitação na cobertura, com Lima Franco); Sacavém (seis edifícios de habitação); e Vila Nova de Ourém (mercado e bloco de habitação, com Lima Franco). 

Em 1958 termina a parceria com Lima Franco e no ano seguinte parte para Luanda, a convite de Manuel Calvet de Magalhães, para leccionar no, então, Liceu Nacional Salvador Correia. Aqui permanece como professor até 1964, data da abertura do seu escritório na Rua António de Oliveira Cadornega. As décadas de 1960/1970 são marcadas pelo trabalho que realiza na capital angolana. Prossegue a mesma abordagem de ajustamento da linguagem moderna à cidade convencional em edifícios de continuidade, dedicados a diferentes programas e exibindo igualmente uma arquitectura anónimaDada a sua experiência no plano habitacional, logo em 1960, a Câmara Municipal encomenda-lhe edifícios residenciais para oficiais, junto ao mercado do Kinaxixe. Dois anos depois inicia diversos conjuntos de habitação e comércio na Avenida dos Combatentes, contribuindo para dotar esta artéria da cidade de uma imagem de modernidade que ainda hoje ostenta. Da sua autoria são os dois edifícios que constroem o topo da Avenida – seguindo a cércea pouco elevada do largo do Kinaxixe, em contraste com a verticalidade do célebre Cuca –, e erguendo-se sobre uma arcada de desenho moderno que torna mais ameno o clima tropical. Desenha outros blocos, com alçados formados por retículas e varandas profundas, entre os quais, o que habita com a sua família até à independência angolana. De 1973 é o prédio Gago da Graça, onde recupera o tema da galeria exterior de distribuição. Desenha ainda o Cinema Tivoli, no Bairro Azul, na Pequena Samba. Neste período, desenvolve vários equipamentos públicos em diversas cidades angolanas, destacando-se a Escola Modelo (Luanda), o Palácio de Justiça (Carmona, actual Uíge) e a Escola Industrial de Nova Lisboa (actual Huambo). Deixa por concluir, na área do Kinaxixe, uma torre de 22 pisos, cuja estrutura, actualmente é ocupada por habitação informal. Ainda em Luanda, Manolo Potier torna-se primeiro violino da Orquestra do Instituto de Angola. De volta a Lisboa, em 1975, trabalha pontualmente com o construtor José Maria Duarte Júnior, no escritório da Praça do Saldanha. Reforma-se, todavia, como músico da Orquestra Ligeira da Radiodifusão Portuguesa, a sua principal actividade após o regresso a Portugal. Actualmente vive em Carcavelos. |

 

*com Ricardo Lima


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